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Milton Santos

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UMA LIÇÃO DE MILTON, O FILÓSOFO DA GEOGRAFIA

Por
Maria Adélia Aparecida de Souza,
Geógrafa,
professora da USP.

Tive o privilégio de ter Milton Santos como amigo, parceiro de muitas caminhadas, socorro das horas graves, mestre na vida e na Geografia.
Com ele tentava aprender sobre a paciência, a espera, o rigor, o texto claro com sonoridade agradável, a não ter medo de pensar, não ceder nunca, mas, jamais fechar a porta. Com ele estava aprendendo a descobrir a Filosofia para compreender a Geografia e com ela entender este mundo novo, mutante, veloz, onde a volúpia enleva os incautos.
Ensinou-me que a Geografia é uma filosofia das técnicas e que tem uma imensa contribuição a dar para a compreensão da sociedade e, com ela, olhar de frente e otimista para este período popular da história em que vivemos. Tempo de esperança no mundo novo que se forja com a participação efetiva da maioria pobre, com suas maravilhosas estratégias de sobrevivência e de vida. Mundo novo e ainda incompreensível. Mundo solidário desses homens pobres e lentos que dominam o planeta. Entendi que hoje a âncora é o futuro, e que temos a possibilidade de decidir como nunca sobre ele; que o passado é reflexão, o futuro, uma certeza. Que a globalização é uma metáfora e que é nos lugares, este espaço do acontecer solidário, que se forja a resistência no embate da vida cotidiana.
Sobre a vida ensinou-me que somos únicos, que é fundamental acreditar na humanidade e ter confiança no povo; que o amor não é uma linearidade e não é a razão quem decide sobre ele. Ensinou-me o que havia aprendido com seu grande amigo, Navarro de Brito, que não tenho inimigos pois sou eu quem os escolho. Não aprendi ainda a lição da paciência, atributo da juventude, ainda ontem me dizia ele. Confundo-a, por vezes, com a tolerância desnecessária. Não suporto a intolerância e a hipocrisia da sociedade e da universidade para com os negros e, mais ainda, com os negros ilustres. Eu o vi, durante décadas, divertir-se e enfrentá-las com a sabedoria dos grandes.
Demorei a enfronhar-me em suas conversas. Seu subtexto é que era precioso. Sua ironia imaculada. Sua alegria contagiante. O Brasil perdeu com Milton muito dela e da sua ternura, atributo inadmissível para tão difícil, firme e complexa personalidade. Mas quem se esquecerá da elegância e da ternura de Milton?
Sua obra, ainda pouco conhecida e estudada no Brasil, revoluciona não apenas a Geografia mas as ciências humanas e sociais. Com sua genial conceituação sobre o espaço geográfico, esse sistema indissociável de objetos e ações, Milton nos dá a possibilidade de compreender sobre a totalidade-mundo. Revisita a Geografia e oferece, especialmente aos geógrafos brasileiros, a possibilidade ímpar de aprofundar o conhecimento sobre o nosso país oferecendo-nos uma preciosidade que é a compreensão, neste gigante continental, do território como abrigo de todos os homens, ou o espaço banal, e o território como recurso para os interesses hegemônicos e para as políticas levadas a efeito no Brasil de hoje. Compreender a formação territorial a partir desses conceitos é oferecer à sociedade um texto geográfico rigoroso que poderá fundamentar um discurso político vigoroso. Ensinou-me a ver então que o Brasil de hoje é governado em função dos interesses dos poderosos, pois para eles o território é preparado. O povo, cada vez mais, perde seu abrigo: não há trabalho, não há comida, não há escolas, hospitais. O território do povo está esquecido. Sugeriu-me a geografia das desigualdades e despertou-me o interesse pela Geografia da Fome, apesar de certa parte da comunidade científica insistir que ela foi abolida do mundo há décadas.
Ensinava-me sobre o método no trabalho intelectual. Na geografia, a ter rigor metodológico e conceitual para jamais me deixar enganar com falsas questões e problemas científicos. Foi crítico contundente da formulação difundida sobre a questão ambiental, à qual juntei a crítica a "sustentabilidade", ensinando-nos o rigor da diferenciação entre a natureza, o espaço geográfico, o meio. Foi um artesão do método. A Geografia jamais poderá ser a mesma depois da obra de Milton. Persistir entendendo-a como "física", relacionando sociedade e natureza, é ignorar o movimento do mundo explicado não apenas pelos geógrafos mas pelas ciências em geral; é ignorar a história dos homens.
Milton ensinava-me que atravessamos a racionalidade econômica sem muitos avanços para a totalidade da humanidade, e que estamos mergulhando na nova racionalidade, a racionalidade política. É chegada a hora da verdade. É preciso estar preparado para ela. E ela precisará, e muito, dos bons intelectuais. É preciso se preparar para a grande batalha que se avizinha, me dizia ele, há exatos dez dias, resistindo à insuportável dor que o torturava. É preciso continuar, sempre... Vamos continuar insistiu, várias vezes...
A partida de Milton nos deixa órfãos: o Brasil perde um de seus mais dedicados vigilantes, a política brasileira um observador e pensador rigoroso, seu revolucionário mais autêntico. A Geografia perde seu filósofo, a Universidade seu mais elegante, destacado, dedicado e competente professor e intelectual.
Perdemos, seus discípulos, amigos e alunos espalhados pelo mundo todo, nosso mestre e um grande amigo.
Mas, o céu está em festa...
Viva Milton Santos, um cidadão do mundo que nos deixa a esperança como herança!

Currículo Lattes de Milton Santos


Texto disponível em: CONHEÇA O TERRITORIAL


Alguns livros disponíveis